Boas vindas

sábado, 17 de dezembro de 2011

TEIAS EM CONSTRUÇÃO

Caros leitores(as) que nos acompanham mensalmente nesta coluna “Teias em construção”.
O assunto que abordaremos nesta edição é primeiramente a partilha da minha experiência como mulher estudando Teologia Feminista, as implicações que isso trouxe para a minha vida e as desconstruções que fui fazendo ao longo do processo.
Eu fui criada num ambiente em que o homem era o forte , aquel que cuidava dos negócios da casa e a mulher como aquela subordinada ao homem, dedicando-se ao cuidado do marido, dos filhos e da casa num todo.
Quando comecei a estudar Teologia Feminista fui compreendendo a partir da História e da Palavra de Deus que a mulher sofria muito por causa da divisão que a sociedade estabelecia entre homem e mulher. Mas, percebe-se que hoje em parte isso ainda continua.
As mulheres percebendo toda essa divisão decidem-se escrever um livro-manifesto, com o tema “Não estamos dispostas a calar” contestando a igualdade sacramental na Igreja. Com o tempo elas vão se organizando e criam um grupo de reflexão teológica que foi denominado “Teologia Feminista” isso nas ultimas décadas. Com isso se introduz no círculo hermenêutico a outra metade da humanidade e da Igreja, enriquecendo a experiência de fé, a sua formulação e as suas expressões.
Quando as mulheres decidiram reverter o caminho já trilhado, muitos foram os desafios enfrentados. Um deles é ao falar da questão de gênero muito vista como identidade masculina e feminina e não como uma categoria relacional. E hoje não é diferente, quando se fala de gênero os comentários são “isso é coisa de mulher”. Mas o que se busca é a igualdade. Ninguém é mais por ser homem ou mulher.
Como já comentávamos, na Palavra de Deus vemos muito relatos de experiências de mulheres presas a um sistema que as mantinha sob a dependência de um homem seja ele pai, marido, irmão ou filho, ou seja, ela não tinha direitos nem liberdade perante a sociedade.
Destaco aqui a coragem de Tamar, uma viúva que vai em busca de seus direitos. Tamar pertencia à tribo de Judá. Ela se casa com Her filho mais velho de Judá, esse morre sem deixar descendência. Tamar segundo a lei do levirato casa-se agora com o irmão de Her, Onã, esse vem a falecer sem deixar descendência. Judá ainda tem mais um filho, que deve ocupar o lugar dos irmãos. Judá manda Tamar para a casa de seu Pai até que o ultimo filho Sela cresça. Passa-se o tempo e Judá não cumpre a lei do levirato. Tamar toma uma decisão, vou me vestir de prostituta e me colocar no caminho para Tamna, pois Judá vai tosquiar suas ovelhas. Judá não a reconhece como sua nora e tem relações sexuais com ela. Tamar pede a ele objetos de seu uso pessoal como provas. Tamar fica grávida e mostra que ela foi mais fiel a lei do que Judá. Tamar, como tantas outras mulheres nos interpelam na busca pela descontrução de certas mentalidades impostas. Caro leitor (a) para uma maior reflexão leia o texto na integra – Gn 38,1-26.
Na Bíblia percebemos também fatos que revelam como a afetividade e a sexualidade eram vivenciadas. No livro do Levítico e Cântico dos Cânticos vemos a mulher como pessoa impura por ser filha de uma mulher. O sexo era visto como impuro. Tanto ao dar a luz , ter relações ou estar no período menstrual tornava a mulher impura e isso a impedia de participar das celebrações do templo, tocar nos filhos, maridos e outras pessoas entre outras recomendações. O livro do Cântico dos Cânticos é um livro que retrata um novo olhar sobre a sexualidade humana. A circuncisão era o rito de passagem dos meninos que permitia a ele pertencer ao povo de Deus, ser incluído na aliança. As mulheres não faziam a circuncisão e isso afirmava que a mulher só poderia chegar a Deus intermediada por um homem. Jesus veio quebrar essa barreira. Pelo sacramento do Batismo todos (as) se tornam filhos (as) de Deus, criados (as) a imagem e semelhança de Deus. Os gregos viam o corpo como algo negativo, pecaminoso. Deus criou homem e mulher a sua imagem- sexualidade como sagrada. Jesus pela sua encarnação divinizou o humano e humanizou o divino. Isso diz para nós que em qualquer lugar onde estão o homem e a mulher tanto em casa, na cama ou no trabalho se faz necessário estabelecer relações de igualdade.
Jesus ia ao encontro das mulheres e elas vinham até Ele. Aqui quero destacar o encontro de Jesus com Marta e Maria. Jesus chega na casa de Marta. Marta era quem coordenava a Igreja que se reunia em sua casa. Maria era aquela que simplesmente ouvia. Jesus ao visita-las provoca em Marta certos questionamentos. O que devo fazer, servir ou permanecer passiva? Marta faz um discernimento e Jesus dá a ela uma vocação. Marta vê,crê e anuncia. Maria ouve os ensinamentos de Jesus. Percebe-se neste texto que nos foi que Marta era preocupada com os afazeres de casa – o fazer e Maria aquela que era mais passiva, reflexiva – o ser. Quando percebi que por trás disso tudo está a vocação de Marta, vi um novo modo de perceber as mulheres como protagonistas em uma comunidade, que questionam e buscam entender a sua missão.
Muito foi o que aprendi a partir da visão feminina da Bíblia, de que tudo o que está escrito tem algo a nos transmitir, traços marcantes na história do Povo de Deus.
Caro leitor (a). Que bom saber que você nos acompanha a cada nova edição. Espero que a minha partilha tenha enriquecido a maneira de se relacionar num discipulado de iguais de irmãos ((as) criados a imagem e semelhança de Deus. Obrigada pela sua atenção. Até a próxima edição trazendo para você assuntos de grande importância no nosso mundo teológico.

Pela edição: Karina Skorek

Este foi o trabalho de síntese – avaliação G2 – da disciplina de Teologia Feminista orientada por Lucia Weiler no Curso Básico de Teologia, na ESTEF – 2011.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Vigiai e orai - Elaine Neuenfeldt

Esta é uma fórmula que fica guardada na memoria ao ler este texto bíblico. Estar atentos combinado com a oração. É este a principal mensagem do que se guardou na memória em relação a este texto. E muitas vezes já se afirmou que oração sem ação ou igualmente ação sem oração se torna vazio de sentido na prática cristã.

O texto do evangelho de Marcos a ser refletido no primeiro domingo de Advento reflete uma linguagem apocalíptica, ou um jeito de dizer profecia em tempos de perseguição e perigo. O contexto do texto na época reflete o período conturbado da destruição do Templo de Jerusalém pelos romanos e a subsequente perseguição, morte e violência sofrida neste período. Vigiar constantemente, em todos os momentos - à tarde, à meia-noite, ao cantar do galo, pela manhã engloba todas as horas do dia. Não há tempo de deixar cair a guarda, de cochilar. Estas são recomendações que se encaixam no período litúrgico celebrado: o Advento. Advento é tempo de espera, de esperança; mas não uma espera passiva, de cruzar os braços. Esperança ativa que se desenvolve em ações que concretizam os anseios da oração feita é o que envolve o período do ad-vento - do tempo que já vem.

Este primeiro domingo de advento será celebrado este ano (2011) num momento que se outorgará no dia 10 de dezembro, em Oslo, Noruega, o premio nobel de paz a tres mulheres: a presidente da Libéria, Ellen Johnson Sirleaf, a militante Leymah Gbowee, também liberiana, e a jornalista e ativista iemenita Tawakkul Karman. É de destacar que em 111 anos, apenas 12 mulheres haviam recebido o Nobel da Paz. Considerando todas as categorias do prêmio, até agora apenas 44 mulheres haviam sido agraciadas.[1]

É a história de vida de uma delas que se faz presente neste contexto de reflexão sobre a espera ativa de oração e ação em tempo de advento. Leymah Gbowee teve um papel importante como ativista durante a segunda guerra civil liberiana, em 2003. Ela mobilizou as mulheres no país pelo fim da guerra, organizando inclusive uma "greve de sexo" em 2002.Também organizou as mulheres acima de suas divisões étnicas e tribais no país, ajudando a garantir direitos políticos para elas. Estas são as informações que são destacadas na imprensa em geral, de Leymah Gbowee. O que quero trazer aqui são detalhes um pouco mais amplos que ajudam a entender de onde vem a motivação desta mulher.

Leymah é cristã, e sua prática de fé se insere na Igreja Luterana da Liberia, que é membro da Federação Luterana Mundial. No início de sua militância ela foi presidente da organização de mulheres da Igreja Luterana St. Peter, na capital Monrovia. Junto com outra mulher, Comfort Freeman, organizaram o "Programa Mulheres Construindo a Paz". Esta organização foi plataforma ativa de mulheres engajadas na superação da violência, pelo fim da guerra na Liberia.

"O povo da Liberia tem esperança", dizia Gbowee naquela época, se referindo às mulheres que iniciaram os seus dias sentando por paz em meados de abril, na capital Monrovia. Sob sol ou chuva as mulheres da Liberia se reuniam para afirmar seu compromisso pela paz. Elas se reuniam para protestar contra as açoes de todos que perpetuavam a violenta guerra civil

"Nossa visao é pela unidade de nossas familias e a eliminacao da fome e das doencas. Nos cremos que as maos poderosas de Deus nos acolhem neste esforço. Deus voltou seus ouvidos para nos."[2]

O que elas faziam? Elas se reuniam pra sentar e orar juntas! Mas, sua oração era uma oração que juntava em si o que o texto de Marcos recomenda - vigiai e orai. A oração ativa e engajada destas mulheres lideradas por Laymah se dava nos mais diferentes lugares na igreja, nas casas, nas ruas, ou em pontos estratégicos, como na frente dos portões do exército onde os caminhões de guerra saíam com os soldados prontos para as batalhas na guerra sangrenta que assolou o país.

As mulheres superaram barreiras culturais que as prendiam a ser donas de casas expectadoras da violencia, ou limites religiosos - elas reuniram cristãs e muçulmas em suas ações de paz. Elas firmemente pronunciaram com suas palavras que basta! Chega de violência e guerra! Queremos paz! E tomando o rumo de suas vidas e de suas famílias em suas mãos, juntaram as mãos em oração por paz. Seu movimento foi juntando mais adeptas e com a pressão de serem muitas, em redes, em grupos, foram forjando os rumos do fim da guerra no país. De1989 a 2003, Liberia enfrentou uma das piores e mais violentas Guerra civil na África; grupos rebeldes e forças governamentais se enfrentaram em batalhas pelo poder, em conflitos étnicos e políticos.[3]

Em 2008, eu tive a oportunidade de visitar a igreja Luterana da Liberia e conhecer o trabalho das comunidades e dos grupos de mulheres que seguem firmes no testemunho de ser igreja inserida no contexto de pobreza, testemunhando com ações diaconais a presença do Evangelho libertador neste mundo. As mulheres seguem reunindo-se em oração, que são momentos de memória que está vigilante para que a guerra não volte, para que a paz, mesmo que frágil, siga regendo a vida desta sociedade tao sofrida. As mulheres guardam na memória que a oração é capaz de parar os tanques de guerra.

A história de vida e testemunho de fé desta mulher que foi reconhecida internacionalmente laureada pelo premio nobel da paz ajuda na reflexão neste tempo de advento, inspirada pelo evangelho de Marcos, que exorta a vigiar e orar. A oração militante destas mulheres da Liberia é um exemplo concreto de como esta exortação se transforma em prática.

Elaine Neuenfeldt - pastora da IECLB, trabalhando na Federação Luterana Munidal repsonsavel pela oficina de Mulheres na Igreja e na Sociedade.


Fonte: http://www.cebi.org.br/noticia.php?secaoId=21&noticiaId=2557

Vigiai e orai - Elaine Neuenfeldt

Esta é uma fórmula que fica guardada na memoria ao ler este texto bíblico. Estar atentos combinado com a oração. É este a principal mensagem do que se guardou na memória em relação a este texto. E muitas vezes já se afirmou que oração sem ação ou igualmente ação sem oração se torna vazio de sentido na prática cristã.

O texto do evangelho de Marcos a ser refletido no primeiro domingo de Advento reflete uma linguagem apocalíptica, ou um jeito de dizer profecia em tempos de perseguição e perigo. O contexto do texto na época reflete o período conturbado da destruição do Templo de Jerusalém pelos romanos e a subsequente perseguição, morte e violência sofrida neste período. Vigiar constantemente, em todos os momentos - à tarde, à meia-noite, ao cantar do galo, pela manhã engloba todas as horas do dia. Não há tempo de deixar cair a guarda, de cochilar. Estas são recomendações que se encaixam no período litúrgico celebrado: o Advento. Advento é tempo de espera, de esperança; mas não uma espera passiva, de cruzar os braços. Esperança ativa que se desenvolve em ações que concretizam os anseios da oração feita é o que envolve o período do ad-vento - do tempo que já vem.

Este primeiro domingo de advento será celebrado este ano (2011) num momento que se outorgará no dia 10 de dezembro, em Oslo, Noruega, o premio nobel de paz a tres mulheres: a presidente da Libéria, Ellen Johnson Sirleaf, a militante Leymah Gbowee, também liberiana, e a jornalista e ativista iemenita Tawakkul Karman. É de destacar que em 111 anos, apenas 12 mulheres haviam recebido o Nobel da Paz. Considerando todas as categorias do prêmio, até agora apenas 44 mulheres haviam sido agraciadas.[1]

É a história de vida de uma delas que se faz presente neste contexto de reflexão sobre a espera ativa de oração e ação em tempo de advento. Leymah Gbowee teve um papel importante como ativista durante a segunda guerra civil liberiana, em 2003. Ela mobilizou as mulheres no país pelo fim da guerra, organizando inclusive uma "greve de sexo" em 2002.Também organizou as mulheres acima de suas divisões étnicas e tribais no país, ajudando a garantir direitos políticos para elas. Estas são as informações que são destacadas na imprensa em geral, de Leymah Gbowee. O que quero trazer aqui são detalhes um pouco mais amplos que ajudam a entender de onde vem a motivação desta mulher.

Leymah é cristã, e sua prática de fé se insere na Igreja Luterana da Liberia, que é membro da Federação Luterana Mundial. No início de sua militância ela foi presidente da organização de mulheres da Igreja Luterana St. Peter, na capital Monrovia. Junto com outra mulher, Comfort Freeman, organizaram o "Programa Mulheres Construindo a Paz". Esta organização foi plataforma ativa de mulheres engajadas na superação da violência, pelo fim da guerra na Liberia.

"O povo da Liberia tem esperança", dizia Gbowee naquela época, se referindo às mulheres que iniciaram os seus dias sentando por paz em meados de abril, na capital Monrovia. Sob sol ou chuva as mulheres da Liberia se reuniam para afirmar seu compromisso pela paz. Elas se reuniam para protestar contra as açoes de todos que perpetuavam a violenta guerra civil

"Nossa visao é pela unidade de nossas familias e a eliminacao da fome e das doencas. Nos cremos que as maos poderosas de Deus nos acolhem neste esforço. Deus voltou seus ouvidos para nos."[2]

O que elas faziam? Elas se reuniam pra sentar e orar juntas! Mas, sua oração era uma oração que juntava em si o que o texto de Marcos recomenda - vigiai e orai. A oração ativa e engajada destas mulheres lideradas por Laymah se dava nos mais diferentes lugares na igreja, nas casas, nas ruas, ou em pontos estratégicos, como na frente dos portões do exército onde os caminhões de guerra saíam com os soldados prontos para as batalhas na guerra sangrenta que assolou o país.

As mulheres superaram barreiras culturais que as prendiam a ser donas de casas expectadoras da violencia, ou limites religiosos - elas reuniram cristãs e muçulmas em suas ações de paz. Elas firmemente pronunciaram com suas palavras que basta! Chega de violência e guerra! Queremos paz! E tomando o rumo de suas vidas e de suas famílias em suas mãos, juntaram as mãos em oração por paz. Seu movimento foi juntando mais adeptas e com a pressão de serem muitas, em redes, em grupos, foram forjando os rumos do fim da guerra no país. De1989 a 2003, Liberia enfrentou uma das piores e mais violentas Guerra civil na África; grupos rebeldes e forças governamentais se enfrentaram em batalhas pelo poder, em conflitos étnicos e políticos.[3]

Em 2008, eu tive a oportunidade de visitar a igreja Luterana da Liberia e conhecer o trabalho das comunidades e dos grupos de mulheres que seguem firmes no testemunho de ser igreja inserida no contexto de pobreza, testemunhando com ações diaconais a presença do Evangelho libertador neste mundo. As mulheres seguem reunindo-se em oração, que são momentos de memória que está vigilante para que a guerra não volte, para que a paz, mesmo que frágil, siga regendo a vida desta sociedade tao sofrida. As mulheres guardam na memória que a oração é capaz de parar os tanques de guerra.

A história de vida e testemunho de fé desta mulher que foi reconhecida internacionalmente laureada pelo premio nobel da paz ajuda na reflexão neste tempo de advento, inspirada pelo evangelho de Marcos, que exorta a vigiar e orar. A oração militante destas mulheres da Liberia é um exemplo concreto de como esta exortação se transforma em prática.

Elaine Neuenfeldt - pastora da IECLB, trabalhando na Federação Luterana Munidal repsonsavel pela oficina de Mulheres na Igreja e na Sociedade.


Fonte: http://www.cebi.org.br/noticia.php?secaoId=21&noticiaId=2557

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Recordando: ''A flagrante discriminação da mulher na Igreja é um escândalo''

Médica, teóloga e monja de clausura. A beneditina do mosteiro de St. Benet de Montserrat Teresa Forcades, entretanto, é conhecida em todo o mundo. Um vídeo no youtube contra as multinacionais e a armação da gripe A, catapultou-a para a fama.

Entrevistei-a em Madri, no dia 07 de outubro, por ocasião da apresentação do seu livro A teologia feminista na História. Irmã Teresa afirma que a situação de marginalização da mulher na Igreja é “um escândalo” e que “nenhum Papa se atreveu a proibir ex-cathedra o sacerdócio feminino”. Mas também reconhece que é na Igreja e em seu mosteiro onde se sente mais respeitada como mulher.

A entrevista foi concedida à José Manuel Vidal e publicada peloReligión Digital, 23-10-2011. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Por que uma monja da clausura como você escreveu um livro sobre a ‘Teologia feminista na História’?

O livro foi uma proposta da editora Fragmenta. E propuseram porque sabiam que me formei com a teóloga Elizabeth Schüssler Fiorenza. Conheci-a em Barcelona em 1992, antes das Olimpíadas. Eu iria estudar nos Estados Unidos, especializar-me em medicina. Ela vinha de Harvard e fez uma conferência. Uma conferência na qual se rompeu a comunicação porque a tradutora que sabia muito inglês, não sabia nada de teologia. Ajudei na tradução do inglês para o catalão e se salvou a situação. Elizabeth ficou encantada e me convidou a visitá-la em Harvard. Ao final, foi ela que acabou vindo a Buffalo, no norte do Estado de Nova York, onde estava em meu hospital, para dar outra conferência.

E foi novamente a tradutora espontânea?

Fui a sua conferência, onde não precisei traduzir, e voltamos a nos encontrar. E, como consequência, comecei a traduzir um dos seus livros ao catalão, seu livro de hermenêutica bíblica feminista. Gostei muito do livro e o traduzi para aprofundar o conteúdo. Quando acabei a tradução, fui conversar algumas vezes com Schüssler Fiorenza, para falar de minhas dúvidas e reflexões. Ela, à vista de como recebeu, entendeu e processou o seu livro, animou-me a estudar Teologia e escreveu uma carta recomendando-me estudar em Harvard.

Um percurso que a editora conhecia.

Efetivamente, além disso, havia dado umas conferências sobre teologia feminista em Barcelona. E quando a editora lançou essa coleção de livros breves, introdutórios, que pudéssem servir de manual nas Universidades para introduzir uma disciplina teológica, me pediram o livro que eu aceitei como muito gosto.

Com teóloga feminista lhe magoa especialmenta a atual situação da mulher na Igreja?

A situação da mulher na Igreja tem uma história complexa que inclui tanto a discriminação quanto a promoção. A discriminação magoa qualquer pessoa que seja a favor da justiça e que compreenda que o Evangelho implica crescimento humano em todos os níveis. No Evangelho, se aprende também o realismo de saber que quando uma pessoa tenta viver a mensagem de Jesus, fica à margem. Nesse sentido, a situação das mulheres é testemunho de que há verdades cujo lugar estará sempre à margem até a escatologia final.

Ou seja, que você se sente preparada para continuar na margem ou na fronteira e sem aspirar ao altar.

A dinâmica da margem evangélica consiste, a meu juízo, na promoção da justiça em todos os níveis, mas com o realismo de saber que, quando se consegue um passo a frente, se gera um processo no qual aquele que não quer ficar acomodado continuará encontrando razões para continuar caminhando até as margens. Daí minha defesa teológica das margens.

E a proibição da presença feminina no altar?

A conclusão da comissão bíblica pontifícia, a que Paulo VI pediu que estudasse o tema, foi de que não há razão bíblica alguma para privar o acesso das mulheres ao ministério ordenado. Isso foi no ano de 1976. Em 1974, realizaram-se as primeiras ordenações de mulheres na Igreja episcopaliana. Paulo VI percebeu que iria se produzir a mesma demanda na Igreja Católica e, por isso, pediu para a comissão pontifícia que estudasse o tema.

O que diz de concreto o documento da comissão pontifícia?

Assegura que nas Escrituras não há nada contra. Depois de conhecer as conclusões da comissão, Paulo VI publicou um motu proprio no qual considerava que não se devia ordenar mulheres na Igreja Católica.

Mais a frente veio a tentativa de fechamento definitivo da questão por parte de João Paulo II.

Sim, mas nenhum Papa se atreveu a proclamar essa proibição ex-cathedra.

Esta flagrante discriminação da mulher na Igreja é um escândalo?

Sim. Recomento a quem queira aprofundar esse tema o livro de Gary Macy A história oculta da ordenação das mulheres.

E como se vive essa situação num momento em que a sociedade civil avança na paridade de direitos?

Não gosto do esquema em que se coloca a sociedade civil na vanguarda e a Igreja na retaguarda em algo que deveria ser a pioneira. Entendo que a situação entre homem e mulher e a maneira de conceber o feminino e o masculino numa sociedade contemporânea ocidental deixa muito de ser satisfatória. O que mais me interessa debater teologicamente atualmente são as teorias de Lacan e de alguns pós-estruturalistas contemporâneos. Porque, no momento e reconhecendo que podem existir outras pessoas que tenham vivido experiência contrária, particularmente onde me senti mais respeitada em meu ser mulher é na Igreja e, em concreto, no meu mosteiro. Em comparação com outros lugares, como pode ser no hospital ou na Universidade, fico com o mosteiro, como espaço de liberdade e respeito. Em minha relação com os monges de Montserrat, por exemplo, descobri possibilidades de interação mais ricas do que em geral que vivi e observei entre homens e mulheres que são colegas no hospital ou na universidade.

Então, a Igreja não tão anti-feminina como se diz.

Veja, é preciso começar a falar desse tema com verdade, porque, do contrário, parece que temos de um lado uma sociedade liberada, oásis ou meca para as mulheres e, por outro, a Igreja que é uma instituição de opressão e de desastre. Minha experiência diz o contrário. Porque, se assim não fosse, quem sabe eu já não estaria aqui.

Quer dizer que há um espaço de liberdade enorme dentro da Igreja apesar de tudo?

Sempre houve. O que acontece é que também é preciso denunciar que, entre os quadros de mando da Igreja há uma falta absoluta de representação das mulheres. E é esse o escândalo de que falamos.

Liberdade para as mulheres na Igreja-povo de Deus e falta de representatividade na sua hierarquia.

Temos que mudar essa noção de Igreja que olha primeiro para cima. Para falar da Igreja, temos primeiro que olhar para baixo. E embaixo encontramos fundadoras iniciativas que não tem correlato no mundo civil, ao menos até agora. Vamos ver o que acontece no século XXI.

Acusam-lhe de heresias, os setores mais conservadores e alguns sites. Tem medo?

Lembro da “perfeita alegria” de São Francisco e acredito que o essencial para um cristão é saber que quando todos te aplaudem, alguma coisa não vai bem. Desatar iras de certos setores, por outro lado, não é garantia de que as coisas vão bem, mas é um pouco melhor de quando todos te aplaudem.

A Igreja hierárquica espanhola está muito fechada em si mesma e exerce um excessivo controle?

Está claro que, desde o Vaticano II, houve uma involução. E, na igreja espanhola se pode constatar que o medo existe e que há falta de liberdade para falar com vozes diferentes que é o que acontece quando as pessoas falam a partir de sua experiência. Essa uniformidade de expressão é muito preocupante.

Falta pluralismo na Igreja espanhola. Ou dito de outra forma, são capazes os bispos espanhóis de assumir que há diferentes modelos ou diferentes sensibilidades eclesiais e que todas são válidas?

Há muitos bispos que são capazes. O problema é que não é apenas questão de aceitar isso, mas sim de vivê-lo. Os bispos tem o dever-direito de exercer sua responsabilidade pastoral de acordo com sua propria consciência, não podem simplesmente suprir seu critério com o critério que vem desde cima. Nesse sentido, o bispo não apenas aceita a pluralidade, mas também se converte em gerador da mesma e a vive.

Você é religiosa beneditina. A vida religiosa tem futuro ou terminou o seu tempo. Como a vê?

A vejo muito bem. A vida religiosa tem mudado ao longo da história e apenas terá futuro se continuar mudando. A mudança é inerente à vida religiosa e apenas quem não muda tende a desaparecer. As beneditinas estão acabando, mas esses espaços de comunidade de pessoas que entendem que suas vidas não se plenificam em uma vida de casal, sem a relação de comunidade sempre existirão. Porque, além disso, são pessoas que dão testemunho de que esse é o modelo para todos no mundo escatológico.

A vida religiosa como antecipação da vida celestial.

Esta é a antropologia cristã. A vida de casal é sacramento do mesmo amor de Deus, mas é de uma forma temporal. A vida de comunidade é de forma escatológica, porque Deus nos chama a ser pessoas que compreendam que a relação com toda humanidade, com todas e todos aqueles criados a imagem de Deus, é uma relação de amor absoluto, uma relação de dar e receber como a da Trindade. Esta vida de comunhão trinitária é que a utopia cristã nos propõe.

Mas isso também se pode viver no matrimônio: estar aberto a todos e amar a todos.

Claro, mas o matrimônio é até que a morte nos separe. E por isso dizia Jesus: “Não compreendem”. Porque, no céu, as pessoas não se casam.

Seu vídeo de 2009, denunciando a montagem da famosa gripe A, teve tanta repercussão porque desmontava a superficialidade na qual se movem os grandes poderes da informação num mundo globalizado?

É preciso ser claro na crítica a este desastre da sociedade contemporânea que é o aumento da desigualdade riqueza-pobreza nos últimos 50 anos. Esse é um escândalo muito maior que a injustiça com as mulheres na Igreja da que acabamos de falar, ainda que não haja muito sentido em comparar injustiças, porque cada uma é absoluta em si mesma. Há muito o que criticar na sociedade contemporânea, mas não como um slogan. Porque se é certo que existe essa superficialidade, também é fato de que, pela primeiva vez, há pessoas que realmente acreditam que não se deve esperar que a solução venha de cima.

É o que vemos nessa crescente indignação em todos os lugares, incluindo no mundo árabe?

Estou muito preocupada pelo o que está acontecendo na Líbia, na Síria. Ou pelo que possa vir acontecer no Irã. Especialmente a partir da perspectiva das grandes mentiras políticas. Já o fizeram duas vezes, mas parece que não aprendemos. Aconteceu no Iraque e depois lamentamos. E com Gadafi creio que aconteceu o mesmo. Mente-se para justificar a intervenção militar. Por que não intervimos na Arábia Saudita para liberar as mulhres se o fazemos no Afeganistão?

Gostaria que o Papa fosse à Somália num gesto profético que detivésse ou interrompesse a morte de tantas pessoas e tantas crianças inocentes?

Esse pode ser outro desses slogans de que desejaria afastar-me. Quem sabe agora, quando todo mundo está olhando a Somália, gostaria que o Papa fosse a outra parte. Porque os desastres proliferam. Por exemplo, o que está acontecendo no Sudão?

Os meios de comunicação nos enganam?

Tenho a impressão, confirmada no caso da gripe A, de que outro, dos maiores escândalos atuais é a falta de liberdade no mundo da informação. Há mais liberdade jornalísitca em Periodista Digital ou em Vida Nueva do que no El País ou no La Vanguardia.

Voltamos ao lugar de onde começamos: na Igreja se vive melhor.

Não gostaria de morder a língua na hora de criticar o condenável da Igreja, mas ninguém me peça que diga que na sociedade civil há maior liberdade de que na Igreja, porque não é certo. O que não quer dizer que a Igreja não tenha nada a aprender com a sociedade não eclesial. O que fez sempre.

Participou ou viu a JMJ? O que lhe parece esse tipo de evento?

Não vi muito. Participaram três irmãs mais jovens do mosteiro e voltaram muito contentes. O evento macro-eclesial quem sabe seja um sinal dos tempos. Assisti na Venezuela a um desses eventos macro por motivo do aniversário de 90 anos da morte de monsenhor Romero e me pareceu algo extraordinário. O mesmo pode acontecer com as pessoas que foram ver o Papa. Esses grandes eventos eclesiais quem sabe sejam um sinal dos tempos de século XXI. O importante é o tipo de mensagem que com eles se transmite e como se utilizam esses espaços.

E como o utilizaram na JMJ?

Creio que houve um predomínio de articulações conservadoras ou de mensagens para os jovens no esquema nós-eles (Igreja-Sociedade), mas também houve espaços onde se pode partilhar a fé com uma visão mais aberta.

Tem esperança no futuro da sociedade e da Igreja? É você uma mulher esperançosa?

Sim.

Por exemplo, poderemos ver uma mudança na Igreja a curto prazo?

Mais do que a curto prazo, hoje mesmo. Gostaria de ter sobre a realidade o olhar que Jesus nos pede. Um olhar de que os campos estão dourados ou maduros e apenas faltam os ceifadores. Esse olhar que vê, como diz São Paulo, que o mundo está grávido de Deus. Ou, inclusive já de parto e em lugares onde ninguém espera. Isso é o que dá esperança.


Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_entrevistas&Itemid=29&task=entrevista&id=48693

Livro


O Dia Nacional da Juventude (DNJ) será celebrado na Arquidiocese de São Paulo no dia 6 de novembro, com o tema “Juventude e protagonismo feminino” e o lema: “Jovens mulheres tecendo relações de vida”. O lançamento da editora Paulus "MULHERES NA VIDA DE JESUS, a história das primeiras discípulas", ajuda a refletir sobre este tema. Trata-se de um romance bíblico e pode ser adquirido por R$ 16,00 nas livrarias Paulus ,Paulinas, Siciliano, Cultura, Loyola, Curitiba, outras e pela Internet. Há várias informações sobre ele no Google.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

As mulheres na Reforma Protestante

Sonia Mota*

No calendário protestante, o dia 31 de outubro é uma data importante, pois é a data em que se comemora o dia da Reforma. Todo protestante com um mínimo de conhecimento de história da Igreja citará de cor reformadores como Martinho Lutero, João Calvino, João Knox, Ulrico Zwínglio, Filipe Melanchton e outros. Mas nesta lista está faltando uma parte importante desta história. Onde estão as mulheres que atuaram pela Reforma da Igreja, defendendo, entre outros, a ordenação de mulheres? Que foi feito da memória delas e do trabalho que realizaram? Sabemos que ambos, homens e mulheres, tiveram papel relevante no movimento da Reforma. Mas lamentavelmente as mulheres são geralmente esquecidas. No que segue, queremos dar visibilidade à importância da atuação de algumas destas mulheres, que inclusive tiveram que se defender dos próprios reformadores homens.

1. A posição dos reformadores

Na tradição reformada, embora o sacerdócio universal dos crentes fosse um tema amplamente difundido, ele não foi aplicado para garantir às mulheres o direito ao ministério ordenado. Se, na Idade Média, o ideal feminino era o de monja, na época da Reforma, o ideal era ser esposa e mãe.

Lutero viu como apropriado para as mulheres o papel de ajudantes e companheiras dos homens, cabendo a elas o tradicional papel de esposa e mãe, permanecendo sujeitas aos maridos. Para ele, não existe nenhuma permissão divina para que elas exerçam papel de liderança. Mesmo as que são rainhas precisam de um conselho masculino para administrarem, pois só ao homem é dado o direito de mandar (1).

João Knox é ainda mais radical, chegando até mesmo a ser grosseiro ao publicar um tratado intitulado "O primeiro clangor da trombeta contra o monstruoso regimento das mulheres" (1558), no qual anunciou a sua posição contra qualquer tipo de governo de mulheres, o que para ele significava contrariar a natureza da Escritura e usurpação da autoridade masculina. Mesmo reconhecendo que Deus colocou mulheres notáveis em posição de comando, ele afirma que as mulheres "são fracas, débeis, impacientes, vulneráveis e tolas; e a experiência tem demonstrado que elas são inconstantes, volúveis, cruéis e destituídas do espírito de deliberação e organização" (2). Há quem justifique esta postura devido às experiências que este reformador teve com as rainhas.

Calvino assume uma posição ambivalente. Segundo Jane Douglas (3), "Calvino é o único teólogo do século XVI que vê o silêncio das mulheres na Igreja como coisa ‘indiferente', isto é, como matéria determinada pela lei humana e não pela lei divina". Ele mesmo manteve contato e trocou correspondência com Marguerite de Angoulême. Calvino tratou do assunto sobre o silêncio das mulheres, instituído por Paulo na Igreja, como matéria de ordem política. Examinou criticamente vários textos bíblicos, nos quais reconhece a participação e a importância das mulheres nas Escrituras Sagradas. No seu comentário sobre Gênesis, rompeu com a tradição escolástica ao afirmar que a mulher não foi dada para Adão para ter filhos, mas para ser sua companheira. No entanto, mantém a subserviência da mulher em relação ao homem (4).

Mesmo analisando os textos referentes à participação das mulheres na Bíblia, e até rompendo com a tradição em alguns escritos, o seu trabalho não trouxe conseqüências favoráveis ao papel das mulheres na liderança das Igrejas. Embora reconhecesse a existência de profetisas, admitia que seria um escândalo uma mulher ensinar ao seu marido pela pregação. Faltou aos reformadores coerência teológica, pois todas as pessoas, independentemente de raça, gênero ou condição social, estão incluídas no sacerdócio universal dos crentes.

Mas apesar dos posicionamentos das lideranças masculinas da Reforma, as mulheres buscaram ocupar seus espaços e muitas delas tornaram-se pregadoras.

2. As reformadoras

Catarina von Bora (1499-1550), na Alemanha, talvez seja a mulher mais lembrada da Reforma, sendo hoje reconhecida por ter extrapolado o papel de "esposa de Lutero". Além de excelente administradora dos bens familiares e da casa, conhecia os segredos da medicina caseira, utilizando seus conhecimentos para curar muitas pessoas. Além disto, havia sido monja e, mesmo antes de casar com Lutero, já conhecia o pensamento do reformador através dos seus escritos. Era uma mulher culta, que sabia ler e escrever. Com seus conhecimentos e por participar dos debates que aconteciam em sua casa, Catarina pôde opinar sobre assuntos referentes à Reforma. Em uma das cartas, Lutero informa a ela sobre o Colóquio de Marburg, que tivera com outros reformadores sobre a Santa Ceia, destacando-se dentre eles Zwínglio. Além do mais, foi ela quem incentivou Lutero a responder a Erasmo, quando este escreveu De Libero Arbitrio, ao que Lutero respondeu com o escrito De Servo Arbitrio (5).

Catarina Schutz Zell (1497-1562), de Estrasburgo, era uma mulher culta, leitora de Lutero; casou-se com um sacerdote que sofreu a excomunhão. Para defender o esposo, escreveu ao bispo cartas de protesto em defesa do casamento clerical:

Você me lembra que o apóstolo Paulo disse que as mulheres estejam caladas na Igreja. Eu desejo lembrar-lhe as palavras do mesmo apóstolo de que em Cristo não há mais macho nem fêmea, e a profecia de Joel: "Derramarei do meu espírito sobre toda a carne e seus filhos e suas filhas profetizarão". Não pretendo ser João Batista repreendendo os fariseus. Não alego ser Natan censurando Davi. Só aspiro ser a besta de Balaão castigando o seu senhor (7).

Recebia em casa muitos líderes da Reforma, entre eles Calvino. Além de acolher em casa pessoas perseguidas por causa da Reforma., Catarina Zell também escrevia muito, e em suas cartas incentivava as mulheres dos fugitivos a permanecerem firmes na fé. Estes escritos foram publicados como tratado de consolação. Escreveu também comentários sobre os Salmos 51 e 130, sobre a oração dominical e o Credo. Prestou serviços de acolhida a flagelados, exercendo o ministério da visitação. Intercedeu por melhorias hospitalares. Pregou diversas vezes, inclusive na morte do esposo.

Claudine Levet (1532...?) atuou em Genebra. As atividades desta mulher foram relatadas nas atas de Antoine Fromment, pastor protestante da época. Quando se achava em um ajuntamento em que não havia ministros, os presentes pediam-lhe para explicar a Escritura, porque não podiam encontrar pessoa mais bem dotada com a graça do Senhor. Deixando para trás todas as suas pompas aplicou suas posses no socorro aos pobres, principalmente aos da família da fé, e os que haviam sido expulsos por causa da verdade, recebendo-os em sua casa (8).

Através das informações registradas por Fromment, é possível concluir que Claudine Levet pregava publicamente em Genebra, antes mesmo da chegada de Calvino.

Marie Dentière (9) também atuou em Genebra, não só pregando como publicando livros. Entre estes estão A Guerra e o Livramento da Cidade de Genebra (1536), sobre a Reforma genebrina entre 1504 a 1536, Defesa das Mulheres e Uma Carta Muito Útil (1539), duas cartas escritas para a rainha Marguerite de Navarra. Dentière conclui a carta Defesa das Mulheres fazendo um apelo à rainha para que interceda junto ao irmão, o rei da França, fazendo com que se elimine a divisão entre homens e mulheres, pois estas também receberam revelações que não podem ficar escondidas.

Embora não seja permitido a nós (mulheres) pregar em assembléias públicas e nas Igrejas, não obstante não nos é proibido escrever e admoestar uma a outra com todo o amor. Não somente para vós, senhora, desejei escrever esta carta, mas também comunicar coragem a outras mulheres mantidas em cativeiro, a fim de que todas elas não temam ser exiladas do seu país, parentes e amigos, como eu mesma, por causa da Palavra de Deus. Para que elas possam, de agora em diante, não ser atormentadas e afligidas em si mesmas, mas antes, rejubiladas, consoladas e estimuladas a seguir a verdade, que é o evangelho do Senhor Jesus Cristo. Até agora, este evangelho tem estado escondido, de sorte que ninguém ousa dizer uma palavra a respeito dele, e apareceu que as mulheres não deviam ler e entender nada dos escritos sagrados. É esta a causa principal, minha senhora, que me compeliu a escrever a V. Excia., esperando em Deus que no futuro as mulheres não serão tão desprezadas como no passado... em todo o mundo (10).

O estilo literário de Dentière mostra que ela escreve como mulher para mulheres, utilizando mesmo o recurso inclusivo, não omitindo nos seus escritos as figuras femininas da Bíblia, alertando para o fato de que não foram as mulheres que traíram Jesus ou foram falsas profetisas. Quando analisa o encontro de Jesus com a mulher samaritana, destaca esta mulher como uma das maiores entre os pregadores. E quanto à ordem de Jesus para as mulheres que testemunharam sua ressurreição, ela conclui:

Se Deus deu então a graça a algumas boas mulheres, revelando-lhes, pelas Santas Escrituras, algo santo e bom, não ousariam elas escrever, falar e declará-lo uma à outra? Ah! seria uma audácia pretender impedi-las de fazê-lo. Quanto a nós, seria muita tolice esconder o talento que Deus nos deu (11).

Uma calvinista inglesa, Rachel Specht, usou, em 1621, a parábola dos talentos para defender o direito das mulheres. Ela argumentava que as mulheres receberam corpo, alma e espírito de Deus. A alma, segundo ela, era o lugar onde habita a mente, a vontade e o poder. Para que Deus daria todos estes talentos a elas se não para serem usados? Não usá-los seria uma irresponsabilidade. As mulheres precisavam assumir o compromisso com o Evangelho, ou teriam que responder diante do Senhor pelo mau uso dos seus talentos. Rachel escrevia em forma de poesia e usava o próprio nome, em uma época em que as mulheres faziam uso de pseudônimos masculinos para permanecer no anonimato. As suas anotações eram abonadas por passagens bíblicas, o que revela seu conhecimento e capacidade de argumentação teológica (12).

As denominações oriundas da Reforma levaram algum tempo para permitir a ordenação de mulheres. Ainda hoje, em alguns lugares e em determinadas denominações, lamentavelmente ela não é permitida.

Resgatar esta história é fazer justiça a estas mulheres que tiveram a coragem de fazer diferente, abrindo caminhos para que tantas outras pudessem assumir o púlpito e ser ordenadas ao ministério. Que o dia 31 de outubro seja também um espaço de comemorar todas estas reformadoras e de continuar lutando pelo nosso direito de exercer "o sacerdócio universal de todos os e todas as crentes".

(1) Martim LUTERO. Obras selecionadas, v. 5, p. 160-169).

(2) John KNOX, The first blast of the trumpet against the monstruous regiment of women (1558), in: The works of John Knox, ed. David Laing, v. IV, p. 366-373, ap. J. D. DOUGLAS, op. cit., p. 103-104.

(3) ID., ibid., p. 26.

(4) George H. TAVARD, Woman in Christian Tradition, p. 176.

(5) Heloísa Gralow DALFERTH, Katharina von Bora, em especial p. 86.

(6) Alexander Duncan REILY, Ministérios Femininos em Perspectiva Histórica, p. 136-137.

(7) R. BAINTON, Women of the Reformation in Germany and Italy, p. 55, apud: J. D. DOUGLAS, op. cit. p. 101.

(8) Anthoine FROMMENT, Les Actes et gestes merveilleux de la cité de Genève, apud: J. D. DOUGLAS, op. cit., p. 110.

(9) J. D. DOUGLAS, op. cit., p. 111-114.

(10) Apud J. D. DOUGLAS, op. cit., p. 112-113.

(11) Apud J. D. DOUGLAS, op. cit., p. 113.

(12) W. DEIFELT, op. cit., p. 365-366.

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Ecumenismo - CEBI - 27.10.11

*Sonia Motta é pastora da IPU e colaboradora no CEBI. É organizadora do livro Juventude Superando a Violência